00. O Meu Descartes

Todo mundo tem o seu Descartes. Spinoza, Leibniz, Hegel, Husserl – só para lembrar os mais célebres. Uma árvore genealógica do cartesianismo acabaria por incluir Marx, Sartre, Bergson. Isso para não falar nos anticartesianos – Kant e o idealismo que dele decorre, para dizer o mínimo. A versão mais vulgar faz de Descartes um mero racionalista – ingênuo e beato, malicioso e ateu, a depender do que soe mais ofensivo à platéia disponível.

Salvador Dalí, 1941. Dali at the age of six when he thought he was a girl lifting the skin of the water to see the dog sleeping in the shade of the sea,

Cristão certamente ele foi. Não um jansenista como Pascal, mas um liberal – o anacronismo é só uma provocação – que, desgostoso com as tragédias religiosas e suas consequências, irá buscar refúgio na Holanda protestante. De onde poderia ter partido para o Recife, como imaginou Leminsky, em Catatau. Sim, Paulo Leminsky também tem o seu Descartes. Como Samuel Beckett – cuja obra gravita em torno do solipsismo cartesiano desde Whoroscope, seu primeiro poema publicado. E certamente o poeta alemão Durs Grünbein não será o último a dialogar com estas meditações.

E o meu Descartes? O meu Descartes tem muito de Dalí – como veremos.


Sim, Dalí. Há um hiperrealismo na forma como Descartes nos conduz a um resultado aparentemente inesperado – mas, sobretudo, mal compreendido: ao que chamarei de prova gnosiológica da existência de Deus.

Descartes segue uma trajetória que começa em Agostinho, ganha seu primeiro acabamento com Anselmo e alcança sua forma definitiva nas Meditações, que visam a demonstrar que o pensamento, isto é, qualquer ideia e argumento, tem como condição de possibilidade a ideia de infinito. Uma ideia que, por outro lado, não pode ser inferida de nossa experiencia de mundo. Logo, se toda ideia é ideia de algo, de onde nos vem a ideia de infinito?

Descobrir essa relação, chegar a ela, desde sempre lá, nos permite dizer que a fé antecede o conhecimento – o verdadeiro conhecimento, aquele que sabe-se verdadeiro.

Vejamos, enfim, como isso se dá.