Pensar sobre algo é interrogar-se: “O que é isso?”.
A dúvida é, portanto, um elemento estrutural do processo cognitivo. Mas a dúvida, a dúvida elementar, só faz sentido quando se supõe que a verdade seja possível.
A estratégia da dúvida em Descartes quer aos poucos nos conduzir à hipótese da impossibilidade da verdade. Mas por que passar metodicamente por cada modo do pensamento, posto em dúvida por conta de argumentos hiperbólicos inaceitáveis pelo senso comum, se poderíamos simplesmente saltar para a hipótese do Gênio Maligno?

Em primeiro lugar, suponho, porque essa exposição põe em relevo o processo cognitivo como Descartes o concebe: o papel fundante dos sentidos, a intermediação da memória e da imaginação, a interferência decisiva de certas ideias abstratas que parecem dispor de alguma autonomia porque talvez sejam inatas…
E há sobretudo o aspecto dramático: Descartes envolve o leitor numa atmosfera de perplexidade que nos conduzirá à hipótese absurda de que tudo é sonho – ou melhor, pesadelo: a figura do Gênio Maligno projeta a hipótese de que tudo, absolutamente tudo, seja falso. Quem viu o filme Matrix pode figurar essa ideia e a malignidade de seu resultado. A hipótese do Gênio Maligno é a hipótese gnóstica tão bem exposta no filme. Descartes, em contrapartida, assume a defesa de uma filosofia aberta e realista – sim, o meu Descartes é realista – tão própria do Cristianismo e condição de possibilidade de uma filosofia cristã.
Entretanto, se a hipótese gnóstica do Gênio Maligno for real, a própria dúvida elementar – ou seja, a apresentação de soluções verossímeis concorrentes – seria uma estratégia para melhor nos enganar. Exatamente como no filme, aliás.
Logo só resta ao meditador uma possibilidade: rejeitar como falsas todas as alternativas que se apresentarem a seu espírito. Ou seja: com a instauração da hipótese do Gênio Maligno, a dúvida se converte numa negação. E é o próprio Descartes quem o diz:
“Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender meu juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma falsidade, e prepararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse grande enganador que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-me algo.”
Devo supor, portanto, que o Gênio sempre me engana; de tal modo e tão absolutamente que no caso de uma dúvida entre alternativas verossímeis devo supor que todas são falsas, porque nada, absolutamente nada, é verdadeiro.
Enfim, é evidente que a hipótese do Gênio Maligno já não projeta uma dúvida – elementar ou hiperbólica – mas uma negação: tudo é falso. E quando se diz tudo, se quer dizer especificamente que todas as alternativas verosimilhantes que constituem uma dúvida são falsas. Esse o truque do Gênio Maligno: nos fazer pensar que a verdade existe.
“E se tudo fosse nada?” – a hipótese do Gênio Maligno nos obriga a pensar o impensável.
Por outro lado, a possibilidade de construção dessa hipótese indica paradoxalmente a impossibilidade dessa negação ser absoluta: haveria, pois, uma falha na máquina de enganar – a rachadura na xícara de chá onde se pode contemplar o abismo. “Eu poderia então demonstrar ao menos que tudo é falso?” A simples possibilidade da pergunta já é um sinal de fraqueza do Gênio Maligno… Mas sigamos adiante.
Para enfrentar o Gênio Maligno, Descartes estabelece uma estratégia baseada nessa evidência: não se trata mais de se deixar capturar por uma falsa dúvida, mas de negar simultaneamente as alternativas que se apresentem como verossímeis. E como isso se fará? Não permitindo que nenhuma ideia dure o suficiente a ponto de pretender-se verdadeira. Isso corresponderá a um estado mental muito específico, do qual falaremos a seguir.
Na verdade, trata-se de um experimento. Um experimento mental de caráter metafísico.
Chamo de experimento porque a estratégia de ação proposta por Descartes tem todas as características de um experimento científico tal como o concebemos.
Trata-se de produzir um estado mental muito bem determinado, em tudo equivalente ao exercício de imaginar um triângulo ou um gato (coisa que a ninguém parecerá muito difícil, espero) com a diferença que neste caso a ideia a se produzir é especialíssima e por isso mobiliza modos específicos da minha vontade e do meu entendimento. Ou como passarei a chamar daqui por diante: da minha volição e do meu intelecto.
No caso do intelecto, memória, imaginação e sensibilidade não terão nenhum papel, apenas o entendimento cumprirá a função de formular a hipótese contrassensual e traçar a estratégia que será adotada pelo meditador. Daí em diante, será a volição, atuando num modo específico, que sustentará o experimento, como veremos a seguir.