Negar – eis do que se trata – em face da hipótese gnóstica e herética do Gênio Maligno. Negar. Negar positivamente. Decididamente. É em São Tomás que se encontrará o caminho. Na Suma Teológica, Iª-IIae q. 8, São Tomás de Aquino, ao responder se a vontade pode querer o mal, afirma:
“Embora a potência dos contrários seja a mesma, contudo ela não se comporta com ambos, do mesmo modo. Assim, a vontade tende para o bem e para o mal; mas para aquele, apetecendo-o; para este, fugindo. E por isso o apetite atual do bem se chama vontade, designando esta um ato de vontade; e é neste sentido que estamos agora tratando da vontade. Ao passo que à fuga do mal se chama antes negação da vontade (noluntas) . Por onde, assim como a vontade quer o bem, assim a sua negação foge do mal.”
Infelizmente, a tradução é péssima, pois não se trata da negação da vontade, ou o apetite de querer o bem, mas de um modo específico da volição, que Tomás chama de noluntas – ou noluntade, na tradução espanhola que se adapta ao português com perfeição – que é o apetite de não querer o mal.
Uma nota importante: para facilitar a compreensão, venho chamando de volição ao impulso de querer, reservando o termo vontade para o impulso de querer o bem, e noluntade, para o impulso de não querer o mal. Desse modo, acredito me manter mais próximo do sentido tomista, além de facilitar a compreensão do leitor.
Vejamos o original em latim:
Ad primum ergo dicendum quod eadem potentia est oppositorum, sed non eodem modo se habet ad utrumque. Voluntas igitur se habet et ad bonum et ad malum, sed ad bonum, appetendo ipsum; ad malum vero, fugiendo illud. Ipse ergo actualis appetitus boni vocatur voluntas, secundum quod nominat actum voluntatis, sic enim nunc loquimur de voluntate. Fuga autem mali magis dicitur noluntas. Unde sicut voluntas est boni, ita noluntas est mali.
Em inglês, preservou-se a distinção, mas inverteram-se os termos como os utilizo aqui:
The same power regards opposites, but it is not referred to them in the same way. Accordingly, the will is referred both to good and evil: but to good by desiring it: to evil, by shunning it. Wherefore the actual desire of good is called “volition” [In Latin, ‘voluntas’. To avoid confusion with “voluntas” (the will) St. Thomas adds a word of explanation, which in the translation may appear superfluous], meaning thereby the act of the will; for it is in this sense that we are now speaking of the will. On the other hand, the shunning of evil is better described as “nolition”: wherefore, just as volition is of good, so nolition is of evil.
Em espanhol optou-se pela tradução “noluntade“:
“Una misma potencia es de cosas opuestas, pero no se comporta con ellas del mismo modo. Así, pues, la voluntad se relaciona con el bien y con el mal, pero con el bien deseándolo, mientras que con el mal, huyendo de él. Por consiguiente, el apetito en acto de bien se llama voluntad, puesto que designa el acto de la voluntad; y en este sentido hablamos ahora de voluntad. La huida del mal, sin embargo, se llama mejor noluntad. Por tanto, igual que la voluntad es del bien, la noluntad es del mal.”
Como se vê, a tradução para o português evitou o problema de traduzir noluntas, jogando fora toda a complexidade da questão.
Essa digressão é importante porque, em face da hipótese do Gênio Maligno, como já não é mais possível “querer o bem”, será preciso “não querer o mal”. É preciso, portanto, mobilizar a noluntade (noluntas). Porque, se tudo aquilo que eu tomava por bem é mal, logo só me resta não querer o mal, pois já não há bem a querer – e nisso exatamente reside o engano: fazer que eu tome o mal pelo bem. Logo, é nesse modo negativo da volição que o espirito deliberadamente tem de atuar, seguindo a determinação de seu intelecto de não permitir que nenhuma ideia dure o suficiente a ponto de erguer pretensão de verdade.
Trata-se de um experimento simples, mas sutilíssimo, que irá exigir tanto um esforço da volição e do intelecto do meditador – porque inteiramente na contramão das operações cotidianas – como certas condições materiais que o facilitem: isolamento, silêncio, escuridão.
O primeiro passo será, portanto, anular o quanto possível os estímulos sensoriais; e depois, não admitir que memórias e devaneios cheguem a constituir-se como ideias ou representações. Se me mantenho firme em minha noluntade, temos de admitir que é ao menos logicamente aceitável que cheguemos a um grau zero cognitivo, a um estado mental a que corresponde uma ideia singularíssima de escuridão e silêncio, descrita formalmente como uma pura duração vazia de conteúdo.
Vejamos a seguir essa ideia mais de perto.