05. “Penso, existo”: o tal do Cogito ou esse eu imanentíssimo

OK, eu penso, eu existo. Mas, e daí?

Sem dúvida, nunca antes se pôde dizer com tanta autoridade e ênfase: eu.

Mas tudo o que Eu tem de seu nesse momento é escuridão e silêncio. Como nos delírios solipsistas de Beckett. Voltemos, no entanto, o filme beckettiano antes que o erro de Kant se introduza na cena.

Esse Eu imerso em si mesmo nada tem de transcendental. Ao contrário, esse Eu é imanentíssimo em sua transitividade adâmica. E na profundidade e largueza de sua introspecção, Eu encontra e demarca um espaço-tempo de potência pura onde tudo que de Eu derive tem o legitimo direito de existir como ideia sua: bem-vindos ao jardim das delicias solipsistas.

Não sou nada. (…)
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Potência pura. Autonomia sem limites… Posso tudo (ainda que certamente nem tudo me convenha) desde que não saia de mim. Desde que não abra os olhos físicos – porque não sei ainda se os tenho ou não. Ainda não. Mas todos os sonhos do mundo que me habitam são legítimos e estão a salvo do Gênio.
Estou só, aqui e agora, vivo. É certo.

E na vastidão ilimitada de meu espirito possuo um mundo que se legitima exatamente por ser meu. Da tentação solipsista nem Adão escapou – e entre nós, sua herança há quatro séculos vem tomando uma legião de formas.

Deixo-me iluminar por minha luz interior, aqui onde o poder do gênio não me alcança, e sou tentado a pensar que muitas dessas ideias podem de fato indicar um mundo real e verdadeiro fora de mim – pela íntima relação que acredito perceber entre essas ideias e aquelas outras que parecem não precisar de um mundo exterior para legitimamente existir.

Eu tenho o meu mundo. Se fui criado por um gênio maligno, ele não é perfeito a ponto de me enganar tão perfeitamente que me aparte do meu mundo. Por ora eu só tenho a certeza de que o gênio que me produziu não é perfeito (e não merece, portanto, ser nomeado em maiúsculas). Porque se fosse não poderia haver essa rachadura na máquina de enganar-me que seria a vida.

De posse dessa reiterada certeza, posso me permitir inventariar o meu jardim de delícias solipsistas.