Uma vez vencido o gênio em sua pretensão ao absoluto, posso relaxar minha noluntade e permitir-me o deleite das ideias que carrego. Como no cinema, depois da escuridão, faz-se a luz cambiante das imagens em movimento. Ainda não me permito abrir os olhos e liberar meus sentidos para o presente – não ainda – mas a memória e imaginação podem agora correr soltas – neste momento, quase indistinguíveis, porque ainda não posso dizer se o que chamo de memórias correspondem de fato seja a experiências passadas, seja a deduções relativas a objetos do mundo. Mas as fantasias que podem derivar dessas imagens, e mesmo os entes de razão a elas relacionados, posso deixar que se apresentem sem medo de errar. O prazer que delas decorre não me impede de perceber que todas acabam por apontar para um mundo que não posso afirmar ainda que de fato exista como coisa real por fora.
Como nos sonhos, pode ser que todas essas memórias e imagens, todas essas ideias e conceitos, que parecem derivar de – ou relacionar-se com – um mundo que talvez não exista, sejam portanto fruto do engano que o gênio, já sabidamente imperfeito em sua malignidade, ainda assim seria capaz de produzir de modo falho, mas eficaz o suficiente para submeter mentes menos atentas.
Eu sei que existo. Mas e o mundo – e nele aquilo que chamo “meu corpo”?
Preciso encontrar agora uma ideia que seja independente de mim, isto é, que esteja em mim, mas não possa ter sido produzida em mim por alguma combinação das ideias que carrego no meu jardim solipsista. Essa ideia me apontaria para algo indubitavelmente existente fora de mim e independente de mim? A ver…
Se assim for, se abriria a possibilidade de sustentar a existência autônoma do mundo que insisto pensar que exista fora de mim. Sei já que, como fatos em mim, elas são e existem simplesmente porque duram. No entanto é da essência de algumas delas – e, devo admitir, de todas, no fim das contas – se pretenderem representações e relações verdadeiras de um mundo real e autônomo.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
Fernando Pessoa, Tabacaria, 1928
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Poderia me deliciar até ao fim da vida – ou por mais três ou quatro séculos – nesse inventário, tão atraente quanto vão, sem chegar a conclusão alguma, se não encontrasse em mim – até com certa facilidade – uma ideia que não poderia provir de mim e surpreendentemente nem do mundo que não sei se existe: a ideia de infinito. Se a observo com atenção, ela se impõe, anterior à própria ideia que tenho de mundo. Mais: anterior, na ordem das razões, à própria ideia que tenho de mim.
Vejamos essa ideia mais de perto.