A via introspectiva do meu experimento intelectual alcançou seu termo. De posse, das três ideias indubitáveis que descobri e do critério de existência que deduzi, já me sinto à vontade para abrir os olhos e enveredar pela via contemplativa.
Abro os olhos e o que vejo? De imediato, reconheço que boa parte das ideias do meu jardim solipsista têm correspondência no mundo, e todo o resto parece estar a ele relacionado, mesmo como entes de razão.
Suponho que tudo são criaturas como eu – que agora pareço mesmo ter um corpo – e finitas como eu. Porque, como eu, duram. Duram, mas não são causa de si. Mudam com o tempo. Mas o que é o tempo? Duração das coisas, sucessão de fatos, a substância de que são feitas as coisas? Não sei. Sei apenas que, apesar do evidente efeito do tempo sobre as coisas, elas permanecem sendo o que são. Parecem carregar em si, como o percebeu Aristóteles, uma potência de ser sobre a qual se aplica sua vontade em sucessivas e e incessantes atualizações até chegarem ao fim – ou a um fim. Isto é, até esgotarem toda sua potência de ser ou alcançarem sua finalidade. Mas essa potência já está lá, virtualmente dada, invisível aos olhos, mas sensível ao espírito, como a árvore que intuo na semente da fruta.
De novo, estamos nos limites da linguagem. Melhor abandonar esse olhar genérico e acompanharmos Descartes num dos momentos cruciais da literatura filosófica: a experiência do pedaço de cera.
“Tomemos, por exemplo, esta cera. Foi retirada faz pouco dos favos, ainda não perdeu todo o sabor do mel, retém um pouco do aroma das flores de onde a recolheram; sua cor, figura, tamanho são manifestos; é dura, fria, é fácil tocá-la e, golpeada com os dedos, produz um certo som; está nela presente tudo o que parece exigido para que o conhecimento de um corpo seja distinto.
Mas eis que, enquanto falo, ela é levada para perto do fogo: o que restava de sabor se desvanece, o aroma se dissipa, a cor muda, desfaz-se a figura, o tamanho aumenta, torna-se líquida, fica quente, pode apenas ser tocada e, se a golpeio, já não produz nenhum som. A mesma cera ainda remanesce? Deve-se confessar que remanesce, ninguém o nega, ninguém pensa de outra maneira.
Que havia nela, portanto, que era compreendido tão distintamente? Nada, por certo, do que eu atingia pelos sentidos, pois tudo o que caía sob o gosto ou o olfato ou a vista ou o tato ou o ouvido já se modificou: e a cera remanesce. Talvez fosse aquilo em que estou pensando agora, isto é, que a cera, ela mesma, não era, decerto, a doçura do mel, nem a fragrância das flores, nem a alvura, nem a figura, nem o som, mas um corpo que há pouco se me deparava sob aqueles modos e, agora, sob outros, diversos dos primeiros. E que é precisamente o que imagino, quando a concebo dessa maneira.
Prestemos atenção e, removendo todas as coisas que não pertencem à cera, vejamos o que resta: nada além, com efeito, do que algo extenso, flexível, mudável. Que é, em verdade, esse algo flexível, mudável? Não será o que imagino, isto é, que essa cera pode converter-se de figura redonda em figura quadrada e, desta, em triangular? De modo algum, pois compreendo que ela é capaz de inúmeras modificações dessa ordem, as quais não posso, todavia, percorrer imaginando. Logo, essa compreensão não pode ser alcançada pela faculdade de imaginar.
Que é o extenso? Acaso sua própria extensão não nos é também desconhecida? Pois, na cera que se liquefaz, ela fica maior, maior ainda, se a cera ferve, e ainda maior se o calor aumenta. E meu juízo do que a cera é não seria reto se não a pensasse suscetível de admitir mais variedades, segundo a extensão, do que eu jamais abarcaria pela imaginação.
Resta, portanto, que eu conceda não poder sequer imaginar o que esta cera é: o que só a mente percebe. Refiro-me a esta cera em particular, pois, em relação à cera, no que tem de comum, isto é ainda mais claro.
Mas, que é em verdade essa cera que só a mente pode perceber? Seguramente, é a mesma que vejo, toco, imagino, a mesma, enfim, que desde o início, eu julgava que ela fosse. Ora, o que se deve notar é que sua percepção ou a ação pela qual é percebida não é um ato de ver, de tocar, de imaginar, e nunca o foi, embora antes o parecesse, mas é uma inspeção só da mente, que pode ser imperfeita e confusa, como antes era, ou clara e distinta, como agora, segundo presto menos ou mais atenção às coisas de que se compõe.“
O que Descartes vê “com os olhos do espírito”? Ou melhor: o que Descartes vê com os olhos do espírito simultaneamente ao que vê com seus olhos carnais? A cera como ente imerso num campo de possibilidades em constante atualização em resposta às circunstâncias do mundo ao redor. Em resposta ao calor, a cera derreteu-se, e espalhou-se líquida sobre a mesa, adequando-se ao relevo dela. Fosse outra a superfície, poderia ter tomado incontáveis formas, cujo número, indefinido, beira o infinito.
Eis aí: só reconheço a cera como um mesmo ser que dura porque a vejo contra o fundo virtual de seu campo de possibilidades infinito. E reconheço que esse campo é condição de possibilidade da existência da própria cera: sem ele, a cera não seria algo de flexível e mutável, capaz de responde livremente (segundo os limites de sua essência de coisa finita) aos estímulos do mundo.
Há a cera atual, visível aos olhos do corpo, e há o campo de possibilidades da cera, visível aos olhos do espirito. Percebo-os simultaneamente, o infinito potencial do campo como condição da existência atual da cera. Ou dito de outro modo: a simultaneidade do campo é condição da sucessão temporal da cera.
E o que vale para cera, vale para todos os outros entes, que por sua vez, conjuntamente, estão todos mergulhados num vastíssimo e impensável campo de mútuas compensações que é o Cosmos. Isto é, do ponto de vista ontológico e metafísico, o infinito é condição de existência do finito como ente sucessivo. É o campo que conserva o ente no ser.