Uma palavra define o sistema cartesiano que emerge das Meditações: instável. Duas: volúvel. Porque, conforme Descartes deixa claro na Quarta Meditação, o sistema tem por fundamento a liberdade. Para Descartes, o homem é um ser essencialmente desejante: nele, a volição é infinita, e o intelecto, finito.
Essa é a causa do engano e do erro em um sistema cognitivo criado para a verdade. A volição infinita, tem de ser mediada por um intelecto finito. Não é difícil perceber que está aberto o caminho para o erro, para o auto-engano, para o subjetivismo, para a tirania, para a vontade de poder. O intelecto não tem o controle completo sobre a volição.
Só com muito esforço e atenção podemos manter nossa volição nos limites do razoável, da razão que nos obrigamos a produzir entre nossos desejos e a realidade, para que a vida social e a sobrevivência individual sejam possíveis. Nesse sentido, a noluntade, como modo negativo da volição ou impulso de não querer o mal, serve de reforço aos apelos do intelecto. Pois, não é incomum que a vontade, isto é, o impulso de querer o Bem, nos persuada que o Bem é o nosso bem.
Mas, ainda que nossa volição caprichosa nos possa conduzir ao erro, Descartes dá por demonstrado que o mundo não é nem simulação nem projeção. Sim, o meu Descartes, é um realista.
Podemos dizer que o a vida é um campo de possibilidades virtuais continuamente atualizadas pela volição idealmente orientada pelo intelecto. Isso vale para o homem e para todas as criaturas. A totalidade do mundo não é uma simulação, mas é uma virtualidade incessantemente atualizada. Cada criatura está imersa em seu próprio campo de possibilidades que por sua vez está imerso e em comunicação com o vastíssimo conjunto de campos de possibilidades que é o Cosmos, de tal modo que tudo está conectado a tudo.
Cada criatura atualiza continuamente uma possibilidade do campo orientada por um princípio de economia que busca o melhor efeito com o menor gasto com o intuito de durar o máximo possível, impulso “finalista” de tudo que é finito. Isto é, tudo que é finito tem por fim durar.
Desse principio inercial ou econômico resulta o que poderíamos chamar de tendência probabilística: a totalidade dos atos passados exerce pressão sobre o ato seguinte. Por outro lado, cada ato, ao se inserir na totalidade dos atos passados, o altera. Mas, nenhum ato é necessário ou está previamente inscrito na realidade como tal; nenhum ato é ontologicamente previsível: o mundo é livre em sua absoluta contingência. Porque Deus o criou assim, à sua semelhança: livre.
Somos livres, tragicamente livres.
Por outro lado, preserva-se a onipotência e a onisciência de Deus: o campo de possibilidade de todos os atos cosmicamente possíveis já está dado. Não há ato que já não esteja incluído no plano de Deus. No máximo, podemos conjecturar que há atos que aceleram sua consecução final e há atos que a atrasam.
Mas essa leitura meramente temporal, a única que nos é possível, não faz diferença sob o ponto de vista da eternidade. Só Deus sabe aonde quer chegar. O que nos é dado é escolher nosso caminho. Deus se rejubila ou sofre como nossas escolhas, e nos retribui com sua misericórdia ou sua ira. A liberdade tem seu custo. Não é espantoso que a humanidade se esforce tanto para abrir mão dela.