12. Corolário de pérolas

00. O Meu Descartes

Consolidou-se a imagem de Descartes como um monumento à caretice, a um racionalismo sem imaginação e sem piedade. Nada mais falso. O problema é que a maioria das pessoas nunca leu nada além de O Discurso do Método – que de fato é chatíssimo, mas não passa da apresentação que Descartes faz faz de si mesmo no prefácio de um livro. Nesse caso é preciso levar em conta a novidade do método e, sobretudo, a ousadia de publicar o livro em francês, e não em latim, o que denota que Descartes visava a um público mais amplo, o que explica o didatismo chato do texto. Enfim, o Descartes gênio filosófico e literário está nas Meditações.


01. A necessidade da Metafísica ou a vida levada a sério

A Metafisica não é necessária para a ciência. Daí, a superfluidade do projeto kantiano de aboli-la “para abrir caminho para a fé”. O que denota também um desconhecimento do que seja a fé.

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“Não sou nada (…) à parte isso, tenho todos os sonhos do mundo”. Minha esperança é que este texto dê ao leitor motivo para ler estes versos de Pessoa não com a melancolia com que foram escritos, mas com júbilo.


02. A hipótese do Gênio Maligno: e se tudo mais não fosse?

Descartes não esta criando um sistema, mas descrevendo uma experiência. Isso não foi entendido por seus contemporâneos e até hoje não parece estar claro para a maior parte dos leitores, quando na verdade essa é a chave para o entendimento e a avaliação do texto.

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É preciso lembrar que há uma tradição meditativa ocidental, ainda que no uso cotidiano a palavra tenha ganhado uma conotação, digamos, oriental. O que significa meditar? Devemos entender meditação como uma prática orientada por uma técnica cujo objetivo é produzir um estado mental determinado por um projeto filosófico, místico, religioso ou mesmo físico. A meditação é uma experiência ao mesmo tempo física e intelectual. É o que Descartes nos propõe.

O Proslogion, de Santo Anselmo; The Cloud of Unknowing, de um monge anônimo do século 13; Os Exercícios Espirituais, de Santo Inácio são os exemplos que me ocorrem – e os mais conhecidos – da tradição meditativa ocidental cristã.


03. Noluntas: não querer o mal quando querer o bem já não é possível

Pois é, o “meu Descartes” faz bom proveito de São Tomás… Mais católico, impossível.


04. Pura duração vazia de conteúdo: uma ideia singularíssima e suas consequências

A ideia noluntária de escuridão e silêncio demonstra literalmente que o nada não é; ou, mais precisamente: que o nada não é um “puro nada”, mas alguma coisa representável. Pois se o nada fosse absolutamente nada ele seria irrepresentável. Parece um jogo intrincado de prestidigitador, mas, suspeito, foi por esse caminho que Aristóteles chegou ao conceito de potência e a filosofia à sua segunda dentição.

Enfim, num acréscimo de segunda edição, eu diria: o nada não é, mas existe. Existe como potência.

Se o infinito, como veremos adiante, pode ser a representação do puro ato, o nada assim concebido é a representação da pura potência.


De novo: se tudo é falso – pois o objetivo do Gênio Maligno que me teria criado (o Demiurgo dos gnósticos) é me enganar – eu não poderia ter nenhuma ideia verdadeira. Mas nesse caso, uma ideia indubitavelmente verdadeira seria aquela que não pretendesse ser verdadeira, isto é, não erguesse pretensão de verdade sobre nenhum objeto, interno ou externo. É exatamente o que acontece quando me ponho num estado meditativo determinado, mental e físico, que se apresenta como uma pura duração vazia de conteúdo.
Mas, ressalte-se: vazia de conteúdo representacional. Porque admitimos por óbvio que há uma diferença entre o objeto real e a sua representação mental. É essa diferença que exige os conceitos de verdadeiro/ falso, verossímil/ inverossímil. Então para ser indubitável no contexto da experiência proposta pela hipótese do Gênio Maligno seria preciso que não houvesse essa diferença; que de algum modo a representação e o objeto fossem indistinguíveis.

Pois é exatamente o que acontece no caso da ideia de uma duração vazia de conteúdo, que em termos práticos significa uma ideia de escuridão e silêncio produzida num ambiente mergulhado em escuridão e silêncio. Sob um ponto de vista meramente lógico a experiência é concebível. Sob o ponto de vista prático é realizável. De um ponto de vista ou de outro, o resultado é uma ideia indubitável, pois, repito, objeto e representação são indistinguíveis.

A ideia de escuridão e silêncio coincide com a escuridão e o silêncio. Não há diferença fundamental entre objeto e representação. A ideia de escuridão e silêncio é uma tautologia. Ele dura, mas sempre igual a si mesma, indubitável em sua simplicidade e homogeneidade.


05. “Penso, existo”: o tal do Cogito ou esse eu imanentíssimo

Eu imanentíssimo e transitividade adâmica são ideias que parecem não combinar, se pensamos a imanência como intransitiva. Estamos no terreno dos conceitos anciãos, aqueles que vieram atravessando séculos e chegaram até nós carregados de ambiguidade. Que o eu que emerge da experiência da hipótese do Gênio Maligno é imanentíssimo me parece óbvio: o eu naquele instante não tem senão a si mesmo, ainda que logo venha a descobrir-se cheio de ideias que pode legitimamente considerar como suas, e por isso, verdadeiras para si. Daí a ideia de transitividade adâmica. É Adão quem dá nome às coisas. Sua intimidade com o mundo era total, comparável com a que o eu solipsista que emerge como Cogito tem com seu próprio mundo interno.

No entanto, não se poderia pensar oposição mais radical do que a que existe entre Adão e o Eu. Eu talvez inveje a intimidade de Adão com o Mundo. E Adão, a consciência que Eu tem de si.


06. O inventário das minhas ideias ou o jardim das delícias solipsistas

Perguntar se existe o mundo é perguntar se a matéria existe – ou num sentido metafísico, se ela é boa. Significa, por consequência, perguntar se o presente existe – porque o presente é o corpo. E, perguntar se o presente existe é, enfim, perguntar se existe o tempo. Gosto sempre de lembrar de Matrix porque quem assistiu o filme sabe o quanto esses conceitos estão interligados.

Num sentido mais filosófico, é o mesmo que perguntar se é possível uma filosofia realista. E se admitirmos que o Cristianismo, como filosofia, tem de ser necessariamente realista, é perguntar se a religião cristã pode ser verdadeira.

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Por que uma filosofia cristã tem de ser radicalmente realista? Porque a boa nova é que o corpo não é a prisão da alma, que alma e corpo estão ontologicamente ligados no que virá a ser um corpo glorioso e, portanto, que a matéria é boa, e em nada inferior ao espírito. A novidade radical e escandalosa dessas ideias ainda não foi inteiramente assimilada e posta em prática nem mesmo na própria igreja o que dirá entre os homens. É nesse sentido que entendo o comentário de Remi Bragué em uma entrevista: “Às vezes tenho a impressão que o o Cristianismo ainda sequer começou.”


07. A ideia de infinito “como coisa real por dentro”

Inverti a ordem de entrada das figuras: primeiro Deus, depois o pedaço de cera. Eu, hoje, terei de inventariar mais exaustivamente minhas “delícias solipsistas”, antes de abrir os olhos. Descartes pôde se dar ao luxo de abri-los, ver o pedaço de cera derreter-se diante dele, maravilhar-se, fechar de novo os olhos e, revigorado, retomar o exame do seu jardim. Eu não posso. Porque entre mim e Descartes houve Kant: o Gênio Maligno produziu sua filosofia: o idealismo kantiano.

Todo um universo intelectual se criou em reação as conclusões realistas e, ao mesmo tempo, metafísicas e teológicas, dessas Meditações. Por isso, nós ainda precisamos nos manter de olhos bem fechados. O que não deixa de ser uma delicia romântica: a errância embriagada pelo jardim solipsista é um delírio coletivo de 300 anos que parece não ter fim.

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O infinito não é uma qualidade como a finitude. A rigor, o infinito simplesmente é. O infinito é, por definição, incriado. Não pode haver dois infinitos.

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Se o infinito é sempre atual e só atual, logo ele é simultâneo ou não-sucessivo. Por outro lado, o sucessivo supõe um fundo de possibilidades simultaneamente dadas, sua potência de ser, sobre a qual exerce a liberdade trágica de sua contingência. Essa potência de ser é o tempo, o tempo de cada coisa: ela é a condição virtual da existência atual da criatura.

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A contingência de todas criaturast não é um defeito ontológico, mas condição de possibilidade da Vida.

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Se tudo que é finito é contingente como pode haver lei? A lei expressa uma regularidade e não uma necessidade: dadas tais condições, teremos tais resultados. Podemos supor que o número de elementos que constitui o conjunto de condições é indefinido, e, portanto, admitir que, quanto mais conhecermos as condições de um certo evento, mais instável ele nos parecerá.


08. O pedaço de cera: a ideia de infinito como “coisa real por fora”

Às vezes me parece que os antigos confundiam (ou não distinguiam) movimento e mudança. Acho confusa a ideia que faz da imutabilidade e da imobilidade atributos de uma dimensão superior de ser, uma vez que, na natureza, isto é, no mundo material, imobilidade e imutabilidade são signos de morte. Parece-me óbvio portanto que essa associação da imutabilidade e imobilidade a uma dimensão superior de ser supõe uma desvalorização da matéria.

A mim parece mais lógico dizer que, de um ponto de vista temporal – o único que me é possível – o infinito ou a eternidade parecem imóveis e imutáveis.

Por outro lado, nada posso dizer que seja assim desde o ponto de vista da própria eternidade.


09. O campo de possibilidades ou a verdade como abismo

O ditado “Há males que vêm para bem” parece intuir a ideia de que o mal acaba por diluir-se no rearranjo do campo de possibilidades para cumprir sua finalidade. No âmbito das criaturas finitas, a finalidade última é simplesmente durar. E aí, há outro ditado que traduz essa ideia: “O que não me mata, me torna mais forte”.

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O que pode ser já está dado e nenhuma escolha livre tem poder de alterar o mundo em sua finalidade inescrutável.

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Há essa, digamos, lei da inércia ontológica que se traduz na ideia de que a finalidade – ou o impulso – último de toda criatura é durar. Isso exige a aplicação de uma regra simples: poupar energia. Isto é, em cada ato, gastar o minimo possível de energia em relação ao que se é capaz de produzir. O que é a velhice senão esse processo de entropia crescente em que a equação se inverte e passamos a gastar mais do que produzimos para sobreviver?

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“Abrir-se para a Graça” é, em termos ocidentais e cristãos, algo equivalente à Iluminação oriental. Tem tudo a ver com a contemplação desinteressada que advém do desapego pela propriedade das coisas. Desinteressada aqui não significa indiferente, mas justamente o seu contrário: amorosa. O olhar amoroso contempla as coisas como elas são e não como eu gostaria que elas fossem para melhor me servir delas. Essa convergência de olhares ocidental e oriental é o campo fértil do ecumenismo.


10. A instabilidade do sistema ou a liberdade tem seu preço

Falar Deus assusta. No contexto das Meditações é inevitável: Descartes era católico. Se identificamos ou não a ideia de infinito com Deus é outra história. O mais importante, por ora, é admitir a anterioridade da ideia e a impossibilidade dela ser um mero ente de razão entre outros.

Isso tem implicações, claro. Mas a alternativa é o idealismo de Kant – isto é, a filosofia do Gênio Maligno.

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Descartes é realista porque é cristão, e como já disse, é impossível ser cristão e não-realista. Portanto, por favor, nada de “Tudo é analogia!”, pois não existe afirmação mais anticristã e melhor síntese do que é a gnose – porque antirrealista – no sentido de que as coisas não valeriam por si mesmas, nem carregariam em si sua própria verdade.

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Sim, somos livres a contragosto. Porque ser verdadeiramente livre implica em limitar essa liberdade, contê-la para que ela não nos consuma e destrua tudo ao nosso redor.

Nossa liberdade infinita não é infinita, já o sabemos, no sentido da criação, mas da negação. Não podemos tornar o falso, verdadeiro. Mas podemos negar a verdade do que é verdadeiro – nem que seja pelo uso da violência.

Nesse poder infinito do não, talvez resida nossa salvação. Porque o não relaciona-se com a noluntade, como vimos. Então talvez possamos inferir que nossa noluntade, nosso impulso de não querer o Mal, possa dominar nossa vontade, o impulso de querer o Bem – que facilmente se converte em meu próprio bem.

Enfim é uma esperança. A esperança de um terapêutica mais racional e menos pessimista. A ver…

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A pergunta, no entanto, persiste: por que nos enganamos? Como é possível o erro? Todo a reflexão anterior, suas constatações irrefutáveis, apontam para um sistema cognitivo em comunhão com o próprio mundo de tal modo que o erro deveria ser impossível. No entanto…

Disse como nos enganamos. Mas por que nos enganamos? Por que produzimos o auto-engano? Porque escolhemos o poder em vez do amor. Para durar mais a custa dos outros. E, em nossa vontade de poder, não vemos as coisas como elas são, mas como desejáriamos que fossem. Isso quando ainda nos resta um pingo de inocência. Quando finalmente sucumbimos à psicose do poder, até podemos ver as coisas como são, mas a interpretamos em função exclusivamente do nosso desejo de dominá-las. A isso o cristianismo chama de pecado original: querer a imortalidade sem a Graça. Por isso, precisamos dominar o Outro, porque dominá-lo significa obrigá-lo a fazer o que eu deveria fazer. Assim, poupo-me. E se me poupo, duro. Eis, enfim, do que se trata o poder: durar mais a custa dos outros.

Nesse sentido, só exercício de nossa noluntade pode resgatar nossa inocência, nossa amorosidade. Porque embriagada de egoísmo, nossa vontade, nosso impulso de querer o bem, confunde o Bem com o que eu considero bom para mim. Só minha vontade de não querer o mal pode agora corrigir as distorções da vontade, quando esta viciou-se em tomar o Mal por Bem.

É preciso, portanto, explorar o valor terapêutico do conceito de noluntade.


11. Zero, um e infinito: horizonte ou limite?

Quando Descartes escreve que em Deus criar e conservar são o mesmo talvez se possa inferir algumas hipóteses. A primeira é visível em todas as criaturas: todas parecem viver sendo maximamente o que são – até o fim. É como se na natureza as criaturas não morressem, mas deixassem de ser.

Isso não significa negar o óbvio que é o envelhecimento das coisas finitas. O que quero dizer é que até o fim as criaturas são o que são, sendo sempre o melhor que lhes é possível. O beija-flor que vem beber a água que lhe ofereço todos os dias é sempre O Beija-Flor melhor possível. Ele não deseja ser outra coisa. Ele é o que é e vive sua singularidade como se fosse O Beija-Flor.

É nesse sentido que entendo que falar em natureza do tempo significa dizer que criar e conservar são o mesmo. E nesse sentido é possível dizer, como Descartes o faz, muito discretamente, na quinta meditação, que Deus sive Natura. Donde se poderia dizer: “Deus é o mundo, mas o mundo não é Deus”? Não sei…

Como escreveu Borges, esse vacilante gnóstico:

“¿Crees que la divinidad puede crear un sitio que no sea el Paraíso? ¿Crees que la Caída es otra cosa que ignorar que estamos en el Paraíso?”