Depois do fim, outros começos

“É claro que a alma termina balbuciando o que a língua não alcança.”

Carlinhos Brown

No modelo cognitivo de Descartes alma e corpo estão intrinsecamente associados. Se reduzidos a entes de razão, o corpo pode ser definido como a interface material entre o espírito imaterial e o mundo material. O espirito propriamente é reduzido a dois modos principais: a volição e o intelecto (que Descartes chama respectivamente de vontade e entendimento, mas que eu, por motivos já explicados, prefero nomear como volição e intelecto). O intelecto, por sua vez, integra quatro faculdades ou modos, que operam em sincronia: sensibilidade, imaginação, memória e entendimento. Basicamente, a função do intelecto é produzir informação para orientar a ação da volição.

Em Para Escrever Melhor exponho minha compreensão desse processo cognitivo.

No entanto, tentei mostrar aqui que a realização da experiência metafísica proposta por Descartes, exige incorporar a noluntade à volição como um segundo modo: assim, teríamos a vontade ou o impulso de querer o Bem, que poderíamos chamar de modo positivo; e a noluntade ou impulso de não querer o Mal, que poderíamos chamar de modo negativo da volição.

Por outro lado, acredito ter ficado evidente que será preciso também incorporar o conceito de intuição ao modelo, uma vez que toda a experiência introspectiva parece não apenas supô-la, mas fazer uso intenso dela – ainda que eu tenha evitado nomeá-la em todo o texto.

Por que o fiz? porque o conceito de intuição é problemático. Inapropriadamente, a meu ver, Jacques Maritain, por exemplo, acusa Descartes de angelismo ao sobrevalorizar o papel da intuição em sua obra. Mas, de modo geral, o palavra intuição não teve destino melhor que a palavra meditação, tanto no uso cotidiano quanto na filosofia.

Suponho que a dicotomia dizer/ mostrar, exposta por Wittgenstein no Tratactus, pode dar à ideia de intuição uma definição mais adequada.

Descartes fala de uma intuição simétrica à dedução. Enquanto a dedução se dá sucessivamente, numa ordem crescente de argumentos que alcançarão uma conclusão verdadeira, a intuição é a capacidade de abarcar numa ideia a figuração mais ou menos suficiente da cadeia dedutiva. A intuição não substitui a dedução nem é a ela superior. Ambas se complementam. Eu diria que, aproveitando os termos da Geometria Analítica, a dedução é a equação e a intuição a figura. Tanto na arte quanto na ciência são comuns os pensamentos intuitivos. Beethoven e Nikola Tesla são os exemplos que me ocorrem.

Em Wittgenstein , a dicotomia dizer/ mostrar aponta nessa direção. Ela parece mais simples de abordar do que a leitura do Tratactus deixa transparecer. Cotidianamente lidamos com ela. Por exemplo, como dizer qual o ponto ideal da massa do pão? Não há como descrevê-lo. Sei que ele existe; posso senti-lo na ponta dos dedos; posso mostrá-lo a alguém que possa também tocar a massa; mas não haverá receita, por mais minuciosa, que a descreva.

Uso esse exemplo prosaico, mas cotidianamente lidamos com essa dificuldade de expressar objetivamente algo que subjetivamente nos é muito claro. Por isso recorremos á matemática, à poesia, ao desenho, à mímica.

Em assuntos mais complexos, tenho a impressão às vezes que as palavras apenas cercam um sentido, desenham seu contorno, delimitam os limites do seu conteúdo, mas são incapazes de alcançar seu centro. Às vezes, tenho a impressão que há um cerne indizível tanto nas coisas quantos nos fatos. Indízível, mas não inacessível.

A diferença entre essa experiência cotidiana e a tese de Wittgenstein é que ele busca deliberadamente conduzir a argumentação à um impasse, de tal modo que tudo que se pode dizer verdadeiramente são tautologias; o resto são frases sem sentido, que no entanto, apontariam para algo que só pode ser mostrado. Claro, Wittgenstein não nega o caráter descritivo da linguagem comum quando aplicada aos fatos cotidianos. Mas qualquer extrapolação no sentido de um dizer filosófico é tautologia ou nonsense. Daí a conclusão final: “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar.”

Na vida comum parece acontecer o contrário. É para o que não há palavras que nos sentimos mais atraídos. E não penso aqui nas grandes questões. Falo desses pequenos impasses mentais cotidianos que as nossas limitações intelectuais nos impõem. Queremos dizê-los. E tentamos de todos os modos ao nosso alcance.

Saltemos agora dessas dificuldades triviais cotidiana para a ideia de Deus. Acredito que quando Santo Anselmo define essa ideia como aquela de que não se pode pensar outra maior, ele está simplesmente mostrando algo que não pode dizer. Mostrando com palavras, no limite do paradoxo, que essa ideia não pode ser dita – ou “finalizada” numa descrição. O mesmo se aplica a Descartes quando ele mostra que a ideia de infinito está lá, em seu espírito, desde sempre, independente até de sua percepção dela, anterior a qualquer outra ideia, e impossível de ser abstraída do mundo – onde tudo é finito.

Isso que é mostrado (ou aludido pelas palavras) é produto da intuição. E é preciso não confundir com os produtos da imaginação, porque aqui não há imagem. Por outro lado, resulta da ação do intelecto, como um segundo modo dele, em par com a dedução. No caso, os dois modos interagem, mas o resultado é mais intuitivo do que dedutivo.

Um outro exemplo que me ocorre – talvez não tão adequado, mas que tem um papel fundamental nas Meditações – são os sonhos. Raramente – eu diria que, de fato, nunca – nos lembramos dos sonhos. Guardamos deles uma ou outra imagem e uma impressão geral que parece apontar para algum sentido. É preciso recorrer a intuição, nesse caso. Porque os sonhos não estão submetidos à lógica temporal e sucessiva da princípio da não-contradição. Nos sonhos tudo é ao mesmo tempo muitas coisas, às vezes dispares até; e de tal modo, que é impossível construir uma narrativa sintaticamente coerente que os descreva. E por isso também tão facilmente os esquecemos como história, mas guardamos deles uma impressão. Porque durante o sonho eles fazem sentido.

No que certamente é uma leitura fraca do conceito de Wittgenstein, talvez se pudesse fazer uma distinção entre linguagem analítica – argumentativa ou descritiva – e linguagem analógica ou poética. Nesse caso, quando a linguagem analítica alcança seu limite, recorre-se à linguagem analógica; e assim o pensamento segue avançando até que se criem os conceitos necessários para que os limites da linguagem analítica se ampliem a ponto de abarcar o que antes era indescritível. Pensamento e linguagem estariam então num movimento permanente. Um exemplo que já citei aqui é a descrição da Relatividade em linguagem comum. Entre o ABC da Relatividade, de Bertrand Russell, escrito em 1925, e os documentários do Netflix há toda um avanço conceitual que permitiu a “vulgarização” do que antes parecia “impensável”.

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Proponho a seguir o resumo gráfico de um modelo cognitivo que incorpora a noluntade e a intuição, supondo que o pensando corre por duas vias: a introspectiva e a contemplativa.


Uma última palavra, antes do fim.

Meu intuito neste livro foi apresentar ao leitor comum um experimento filosófico que pode ser realizado por qualquer pessoa. Se você chegou até aqui, é de supor que o tenha realizado com sucesso. Fico feliz.


Nota à segunda revisão

Talvez o leitor tenha enxergado lacunas onde eu penso ver elipses.
Que lhe sejam um convite ao mergulho, é tudo que desejo.